Maria de Guadalupe: mãe - missionária da consolação
Romeiro missionário em Guadalupe: sou um cidadão mestiço desta América pobre que, um dia, me surpreendi envolvido, como romeiro, numa gigantesca peregrinação, na Cidade do México, caminhando em direção ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe. Fiz parte de uma das delegações de missionários da Consolata que estudou a abertura de uma missão no país. Numa manhã de Advento, em 2007, da história do Povo de Deus nesta Ameríndia-Afro-Latina percebi, intimamente, a diferença entre o misterioso acontecimento da fé, atualizado pessoalmente e o acontecimento histórico registrado em documentos ou escritos: o mesmo Tepeyac (nariz do monte) dos nossos cerros e montanhas das cordilheiras continentais; a mesma Tonantzin, “morenita”, Guadalupe e de tantos nomes mais, com indígenas, negros, mestiços e brancos das nossas periferias sociais, econômicas e eclesiais, embora “dignos de todo o respeito”; outros bispos João Zumarraga(s), mas a mesma Igreja; outros conquistadores e colonizadores, porém, mais sofisticados e espertos.
Como missionário, senti-me parte que buscava, com outros colegas, um espaço onde partilhar a verdadeira Consolação, Jesus Cristo, entre uma massa peregrina e migratória de romeiros procurando como órfãos num novo exílio ou desterro, mãe e casa, colo e solo, economia e ecologia, identidade e alteridade, palavra e diálogo, para viver com harmonia e dignidade.
Liturgia no Santuario: envolvido na fumaça e cheiro do incenso, entre flores e cantos, danças e bailes, orações e conversações, risos e choros, gritos e silêncios, fui escutando a voz da mensageira do céu, conforme documento que narra a aparição de Guadalupe: “Saiba e entenda, você é o mais humilde dos meus filhos. Eu, a Sempre Virgem Maria, Mãe do Deus Vivo por quem nós vivemos, do Criador de todas as coisas, Senhor do céu e da terra. (...) Eu poderei mostrar todo o meu amor, compaixão, socorro e proteção. Eu sou vossa piedosa Mãe e de todos os habitantes desta terra e de todos os outros que me amam, invocam e confiam em mim. Ouço todos os seus lamentos e remedio todas as suas misérias, aflições e dores” (Nican Mopohua, 23). A multidão passava lentamente frente à sagrada capa de Nossa Senhora. Eu, embevecido, contemplava os rostos deste novo “povo do sol” marcados por mais de 500 anos de cruéis aflições e heróicas “resistências”, enquanto escutava o leve sussurro saído dos lábios da terna Mãe mestiça, nem espanhola nem índia: “Que te está acontecendo, meu filho menor? Para onde vais, para onde te diriges? Escuta e guarda-o no teu coração, meu filho, o menor, que o que te assusta e te aflige é nada. Não se perturbe o teu rosto nem o teu coração, (...). Não estou eu aqui, Eu que sou a tua Mãe? Não estás sob a minha sombra e resguardo? Não sou Eu a fonte de tua alegria? Não estás debaixo do meu manto e em meus braços? Por acaso tens necessidade de alguma outra coisa? Nada te aflija ou te perturbe”.
Concluindo os rituais litúrgicos do memorial eucarístico no aconchego humano da imensa basílica, registrei no meu coração um refrão saído da experiência octogenária de uma mulher mexicana que dizia “A mulher é a chave da casa”, enquanto explicava que a “caçulinha de minhas filhas, minha Menina”, como a chamava João Diego, era essa chave para entrar no mistério das aparições, do santo indígena, deste santuário tão concorrido e de tudo o que o bom Deus queria nos dizer neste momento.
Hóspede na casa-santuário
Saindo da basílica rondei a pequena colina do Tepeyac entre o canto dos pássaros e a aroma generoso das flores, refletindo na vontade da Senhora do céu: “E para que se realize o que pretende o meu compassivo olhar misericordioso, irás ao palácio do bispo do México, e lhe dirás que Eu te envio, e lhe mostrarás que Eu desejo muito que aqui me providencie uma casa, que erga na planície o meu templo (...)” (Nican Mopohua 26). Casa do colo e do coração: a casa da Mãe, onde Ela pode “cuidar” dos seus filhos e filhas. Uma casa como âmbito do colo que se torna consolo, lugar da reparação para toda reconstrução. A casa como ambiente íntimo que favorece o aconchego e o descanso, a acolhida e a hospitalidade, espaço da reciprocidade. A casa da paternidade e da fraternidade, da afetividade na gratuidade, da comunhão na participação, da paz como fruto da justiça nas relações sociais e a convivência responsável com a Criação.
Casa do culto e da comunidade: lugar privilegiado, não único, para se encontrar com o Deus dos antepassados e de todos os povos atuais, representando na túnica “rosada ou avermelhada” que evoca a aurora ou o entardecer com a cor de Tonatiuh e de Yestlaquenqui, nomes diversos do deus sol. Ele aparece simbolizado no centro-ventre da jovem Virgem do Tepeyac com o sinal ollin (origem da vida do universo), uma pequena flor de quatro pétalas, como um jasmim, que indicam os quatro rumos do mundo. Podemos assim cantar com São Lucas “O Sol Nascente nos veio visitar lá do alto como luz resplandecente” (Lc 1, 78).
Casa do solo e do cultivo: uma casa comum, entendida como solo, terra firme e moradia que garanta a seguridade pessoal, a pertença social e uma economia estável e sustentável. Casa comum, verdadeiro cosmos, desenhada harmoniosamente no “código indígena” escolhido pela mensageira do céu para comunicar seu Evangelho, adaptando-se assim à mentalidade e à cultura asteca, onde a comunicação misturava os hieróglifos gráficos e os fonéticos com as cores, os símbolos dos deuses, cidades e reis, e as cifras numerais para situar o relato no tempo. Outra coisa não significam as estrelas do manto azul, as rochas e montanhas do vestido avermelhado que se entrelaçam com as flores e os vegetais, a energia do sol que se expande ao infinito com os seus raios e a lua que oferece apoio-chão à amável Virgem Mãe, que aparece com o filho no ventre e não nos braços, prestes a nascer, o “anjo sob a Virgem como portador de um novo período cósmico, de um novo sol, o “Sol da justiça”, Cristo, depois do “5º sol” – era que os astecas estavam vivendo. Imagem da mulher do Apocalipse 12, 1-4, vestida de sol e a ponto de dar à luz, inaugurando assim uma nova era: a era da fé e da graça” (Clodovis Boff).
A Consolata no México
No dia 1 de dezembro, no Advento cristão de 2008, os missionários da Consolata que já atuam em sete países da América, abriram uma nova missão no México, num esforço conjugado entre as seis províncias do continente. Inicialmente eles conhecerão duas realidades distintas: Tuxtla Gutierrez em Chiapas, no sul e Guadalajara em Jalisco, no centro. Além da interculturalidade, a nova missão tem outra novidade: a presença de leigos na comunidade composta por nove missionários: quatro sacerdotes (Antonio Noé Romero, de El Salvador, Alessandro Conti, da Itália, Ronildo de França Pinto, do Brasil e Gabriel Abischu Morke, da Etiópia), a senhora leiga missionária Maria Elsia Chavarria Espinosa, 65, colombiana e a família venezuelana Wilmar José Hernandes, 34, advogado e Ginette Josefina, 35, professora com seus filhos, Francisco Javier, 8, e Andrés Miguel, 6. Eles foram como peregrinos missionários na “casa” do “outro” e, ao mesmo tempo, comum (de todos) para partilhar o carisma da Consolata, a verdadeira Consolação, Jesus Cristo, tão semelhante ao “evangelho guadalupano”. Em tempos de escassez de vocações sacerdotais e religiosas a participação de leigos e leigas na missão além-fronteiras torna-se fundamental e abre novos caminhos.
A interação e o intercâmbio do colo afetivo, do culto religioso e do cultivo do solo (economia e ecologia) dos missionários da Consolata na “casa mexicana”, poderá favorecer a maturidade de uma Igreja sempre mais católica e missionária, um Instituto da Consolata mais aberto, encarnado e enriquecido neste chão ameríndio. A vida mesma, em todas as suas manifestações, receberá uma boa injeção de promoção integral, de consolação e liberação através da vida-missão dos sacerdotes e leigos missionários.
Salvador Medina, imc, é Superior Provincial na Colômbia.
Publicado na edição Nº10 – Dezembro 2008 - Revista Missões.
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